Que horas são?

sábado, 1 de setembro de 2012


                               (meu pai morou nesta rua...)




Poemas de Um Terno de Pássaros ao Sul


(Fabrício Carpinejar)


Fragmento I




"Pouco crescemos 
no que aprendemos,
o sabor 

de um livro antigo
está em jovem 
esquecê-lo.

Eu alterei
a ordem do teu ódio.
Fiz fretes de obras 

na estante.
Mudava os títulos 
de endereços

em tua biblioteca
e rastreavas, ensandecido,
aquele morto encadernado 

que ressuscitou
quando havias enterrado 
a leitura,

aquele coração insistente,
deixando atrás uma cova 
aberta na coleção.

Sou também um livro 
que levantou
dos teus olhos deitados.

Em tudo o que riscavas,
queria um testamento. 
Assim recolhia os insetos 

de tua matança,
o alfabeto abatido 
nas margens.

Folheava os textos,
contornando as pedras 
de tuas anotações. 

Retraído, 
como um arquipélago
nas fronteiras azuis.

Desnorteado,
como um cão
entre a velocidade

e os carros.
Descia o barranco úmido
de tua letra,

premeditando 
os tropeços.
Sublinhavas de caneta,

visceral, 
impaciente com o orvalho,
a fúria em devorar as idéias,

cortar as linhas em estacas da cruz,
marcá-las com a estada.
Tua pontuação delgada,

um oceano 
na fruta branca. 
Pretendias impressionar 

o futuro com a precocidade.
A mãe remava 
em tua devastação,

percorria os parágrafos a lápis.
O grafite dela, fino, 
uma agulha cerzindo 

a moldura marfim.
Calma e cordata,
sentava no meio-fio da tinta,

descansando a fogueira
das folhas e grilos.
Cheguei tarde

para a ceia.
Preparava o jantar 
com as sobras do almoço.

Lia o que lias, 
lia o que a mãe lia.
Era o último a sair da luz."





                              (café da manhã...)







BIOFAGIA




"É vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.
Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.
Até chegar ao fim da voz.
Até ser um corpo sem foz."




MIA COUTO



sexta-feira, 31 de agosto de 2012

                                    (a arte da Miriam Postal)



JANELA



Adélia Prado



"Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
clarabóia na minha alma,
olho no meu coração."










(A arte da Miriam Postal está na loja da Maria Teresa Objetos Decorativos 
Rua Tobias da Silva, 174   Bairro Moinhos de Vento em Porto Alegre)




quinta-feira, 30 de agosto de 2012

(Vi este anjo anunciando o Amor...)
                






"Não confie na frase de sua avó, de sua mãe, de sua irmã de que um dia encontrará um homem que você merece. Não existe justiça no amor. O amor não é democrático, não é optar e gostar, não é promoção, não é prêmio de bom comportamento. Amor 
é engolir de volta os conselhos dados às amigas. Não se apaixonará pela pessoa ideal, mas por aquela que não conseguirá se separar. A convivência é apenas o fracasso da despedida. O beijo é apenas a incompetência do aceno. Amor é uma injustiça, minha filha. Uma monstruosidade. Você mentirá várias vezes que nunca amará ele de novo e sempre amará, absolutamente porque não tem nenhum controle sobre o amor."



Fabrício Carpinejar



(Trouxe o anjo lá da Maria Teresa Objetos Decorativos Rua Tobias da Silva, 174   Bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre)



quarta-feira, 29 de agosto de 2012

               Katya Fairy
               SPRING FLOWER
               27 cm. papier mache, modelling clay






"a tarde é uma menina antiga

vestida de muitas saias

saiotes de renda

faces coradas
de sol

brinca de roda
até que a velha noite chame


e ela então se recolhe

num casarão imenso
de muitas portas

e infinitas janelas

atrás das cortinas espera
que a antemanhã

ressurja - mulher

plena de cores e mistérios
chaves nas mãos

e avental de nuvens

como convém às manhãs
parideiras."




Nydia Bonetti




              (Arte no Centro de Cultura de Santo Antonio de Lisboa,SC)






A Força de não ter Força




"Eu a canga e o amor o brilho.
Eu a pedra e o amor a gema.
Eu o gemido e o amor o canto.


Eu o transido e o amor o vento.
Eu grão-podrido do amor arvoredo.
Eu as cinzas, os senões


de seu alento alteando-se chama.
Eu ao meio, a pedaços e farpas,
pondo-me inteira a sua agulha,


a seu amálgama de suor e sal,
que meu sabor é sabê-lo
e meu saber é saboreá-lo."





Maria Carpi, A Força de não ter Força - Editora Bertrand Brasil, 2004



terça-feira, 28 de agosto de 2012





ENCANTAÇÃO PELO RISO

"Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos - risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,

Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!"



Vielimir Khlébnikov - Tradução Haroldo de Campos



segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A CAMISA...





Um pensamento delicado da Helena Britto Pereira, que conheci no Facebook e escreve com o coração na ponta dos dedos. A arte (?!) da fotografia é minha. É o registro que fiz de uma camisa branca masculina. Um tecido feito de afeto. Por empréstimo, deixei meu olhar nele...


domingo, 26 de agosto de 2012

POR QUE É DOMINGO...








BEM NO FUNDO

"No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas."


Paulo Leminski



 
                                                                                             [vejo (?)]

 


DOMINGO IREI


 

"Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Sutil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!"




Álvaro de Campos, in "Poemas"(Heterônimo de Fernando Pessoa)





Uma hora inteirinha da intensidade de Chet Baker...